Colégio de Gaia, 3 de outubro de 2016
Caros alunos, colaboradores, pais, encarregados de educação e restante comunidade escolar
Hoje é, para nós, um dia de alegria!
E é com um misto de fortes emoções no coração que peço um pouco da vossa atenção para a leitura atenta e cuidada das informações que vos quero transmitir.
Todos os dias somos confrontados, nas notícias que nos entram pelo lar, com a dramática situação dos inúmeros refugiados que, hora a hora, chegam à Europa. Já tem sido assunto nas aulas, com os amigos, na mesa de café e em casa, no seio da família. É importante falarmos sobre esta questão. É fundamental que cada um de nós perceba que as razões que levam um ser humano a largar todos os seus pertences e, muitas vezes, a sua família são dramáticas. Questões de vida ou morte.
Assim, conto-vos uma pequena história. É um relato semelhante a milhares, muitos milhares, de tantos outros que acontecem todos os dias.
A Família Ahmed vivia numa cidade grande chamada Salqin, que fica na província de Idlib. Esta província é mesmo vizinha de Aleppo (se nunca ouviste falar desta província/cidade, por favor, faz uma pesquisa rápida no Google e prepara o teu coração).
O Sr. Mohamed Ahmed (52 anos) tinha uma empresa de exploração e comércio de mármores, bem como grandes olivais. A Sr.ª Zaqyia Khatieb (44 anos) era doméstica (o que é tarefa árdua quando se é mãe de cinco filhos). Adora flores e cozinhar, sobretudo doces. Com eles, estão quatro filhos: Lais (9 anos) e Ghaeth (16 anos). O Lais está, agora, na Escola das Devesas, no quarto ano. Por ter feito rapidamente muitos amigos, já arranha o português. O Ghaeth está no nono ano, na Escola Secundária António Sérgio, e está-lhe a ser mais difícil “entrar” na complicação da nossa língua.
Depois, há as duas meninas: Sidra (20 anos) e Yasmin (18 anos). Já terminaram o ensino secundário, na Síria. A Sidra gostava de seguir Farmácia, e a Yasmin, Medicina. Adoram crianças, também.
Tinham uma vida muito tranquila, com conforto acima da média. Não havia nenhum motivo para quererem sair do seu país.
Porque vieram embora?
Porque, bomba após bomba, tudo foi ficando destruído. Os primeiros edifícios, as ruas, a empresa, as casas perto… A gota de água foi a escola do Lais. Na ocasião, ele estava perto e ficou ferido. Quando chegou a Portugal trazia, ainda, o dente da frente partido por causa disso. Foi aqui, em Vila Nova de Gaia, que terminou o tratamento.
Fugiram. Com algumas malas. O que conseguiram. Duas ainda ficaram pelo caminho, quando, numa travessia de barco, tiveram que deitar carga ao mar.
Os relatos de violência chegavam de todos os lados, e era impossível ficar na Síria, esperando que nada acontecesse. Pagaram balúrdios a um “passador”. Conseguiram ser levados para a Turquia. Tudo de noite, às escondidas, sem sequer poder usar luz do telemóvel por causa do perigo de ser apanhado. Só na segunda tentativa conseguiram.
A primeira não correu bem. Por terra, tendo, uma das noites, sido feita a caminhar em lamaçal. A mais dura, pelo que contam.
Ficaram ali uns meses, até conseguirem novo esquema para atravessarem, de barco, até uma das ilhas gregas. Quando aí chegaram, foram conduzidos a um campo de refugiados onde estiveram cerca de três meses. Apareceu a possibilidade de virem para Portugal. Aceitaram logo.
Chegaram no fim de junho. Desde então, a preocupação fundamental tem sido organizar o que é preciso para viverem de maneira autónoma. Há vidas para reconstruir. É preciso recuperar a saúde e lidar com os traumas…
Na Síria está a última filha, a mais velha (22 anos). Por ser casada, ficou. A família insistiu até à última. Vive mesmo em Aleppo. Tem uma filha com menos de um ano.
No rebentamento de mais uma bomba, o marido perdeu um braço e uma perna e acabou por morrer. A bebé, há poucos meses, teve um episódio de febre muito forte. Não havia onde comprar medicamentos. Desde então não mexe as pernas e os pés. Não se sabe, ainda, o que terá sido e se é ou não irreversível. Agora, é praticamente impossível sair. Toda a Europa está de portas fechadas. Mesmo que chegue a um campo de refugiados, ficará por lá indefinidamente…
Todos sabemos que é importante falar sobre os problemas. Aprender com as histórias de vida que todos os dias se desenrolam à nossa volta. No entanto, nesta situação, mais do que falar sobre este problema, fomos convidados a agir.
É com alegria que informo que a Sidra e a Yasmin, a partir de hoje, fazem parte da nossa comunidade escolar. Agradeço, em especial, aos alunos do 10.º ano e professores do Curso de Tecnologias da Saúde pelo sim imediato que deram e pelo acolhimento fantástico que sei que irão dar. Sidra e Yasmin vão assistir às aulas de TdS na perspetiva de, rapidamente, se integrarem no nosso país e recuperarem uma vida feliz que seria sua por direito não fosse a estupidez humana.
Deposito em toda a comunidade escolar a responsabilidade de transformar o Colégio de Gaia numa casa e num ambiente que permita a estas duas alunas recuperarem a fé na humanidade.
Agradeço a Deus por tê-las colocado no nosso caminho.
Espero que sejam as primeiras de muitos(as) porque, apesar do nosso Colégio ser grande, o nosso coração é muito maior.
Obrigado.
Com estima e consideração,
Pe. António Manuel Barbosa Ferreira, Diretor